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Estado esvazia comitês de bacias


Centralização do governo desencadeia crise institucional no campo da gestão da água, alerta especialistaA causa imediata da crise hídrica atual é a seca – as chuvas muito abaixo da média – disse Teixeira Filho, mas isso não é motivo para que os comitês de bacia descuidem da atenção para com o uso do solo e a gestão da qualidade da água. Ela dá um exemplo da complexidade das questões envolvidas.

A forma centralizadora com que o governo paulista vem lidando com a crise hídrica está produzindo uma “crise institucional, uma crise de poder” e a perda de credibilidade das estruturas existentes para a gestão da água no Estado de São Paulo, principalmente dos comitês de bacias hidrográficas, disse ao Jornal da Unicamp o pesquisador José Teixeira Filho, especialista em gestão de recursos hídricos e diretor da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Universidade.
Um comitê de bacia hidrográfica é um órgão colegiado, integrado por representantes do Estado, dos municípios e da sociedade civil, incluindo usuários de recursos hídricos, da área atendida. No caso da crise do Sistema Cantareira, estão envolvidas as bacias dos rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí e Alto Tietê. “Os comitês de bacia são os responsáveis pela gestão, por cuidar das bacias”, disse Teixeira Filho. No entanto, afirma o pesquisador, os comitês foram alijados do processo de tomada de decisão sobre o enfrentamento da emergência atual.
“Quando o governo do Estado cria seu comitê de gestão da crise, os comitês de bacia são deixados de fora”, relata. “O que estranho, também, é que os comitês de bacia não se manifestaram de uma forma muito dura, muito clara, sobre a importância de sua participação, de sua experiência acumulada”.
Criado em fevereiro, o comitê da crise hídrica envolve, principalmente, secretarias estaduais, como a de Recursos Hídricos, Saúde e Meio Ambiente, e empresas de saneamento básico da região metropolitana de São Paulo. 
Teixeira Filho lembra que os comitês têm experiência de vários anos na gestão das bacias, no debate dos problemas de escassez e de qualidade da água, além de um acesso direto à sociedade civil. “O governador não tem esse acesso”, disse.
“Acho que essa centralização está gerando um incômodo, e esse incômodo terá que ser discutido com o go-vernador do Estado após a crise. Nós temos um problema de crise institucional: não temos só uma crise da água, temos uma crise institucional, da gestão da água. Essa gestão passou a ser centralizada, quando o princípio do comitê é descentralização e participação nas decisões. Quando se concentram as decisões, a tendência é aumentarem os conflitos”.
um trecho de plantação de cana-de-açucar e estrada
PACTO E CONFLITO
O especialista lembra que os comitês têm uma prática constante de negociação com a sociedade e de formação de pactos e consensos, e dá como exemplo a cobrança pela captação de água – não apenas pelo uso da água já tratada e distribuída por uma concessionária, mas pela captação da água bruta, para uso, por exemplo, em atividades industriais ou agrícolas. 
“O pagamento do uso da água, e os valores cobrados, isso também foi pactuado, foi negociado no comitê, que tem uma grande facilidade de contato com a sociedade civil. O governador não tem, mas o comitê tem”.  Teixeira Filho acredita que seria muito mais fácil negociar com os usuários reduções de consumo e economias de água “com um personagem que está próximo, não que está muito distante”. “E quem está próximo aos consumidores é o comitê de bacia, não é o governador do Estado”. 
O diretor da Feagri teme que a centralização da resposta à crise tenha abalado a credibilidade da estrutura atual de gestão da água, na qual os comitês de bacia têm, ou deveriam ter, um papel central. “Talvez haja a necessidade de um novo pacto. Porque o comitê de bacia trabalha sistematicamente com a credibilidade. O comitê não gera obrigações legais: os resultados de suas negociações são implementados porque as deliberações têm credibilidade”, disse.
“No momento em que se quebra isso, cria-se uma situação grave. Nós vamos ter que refazer o pacto entre a sociedade civil e o governo do Estado. Porque existia um acordo, de que o governo aceita as decisões do comitê. Se, quando surge uma emergência, ele tira o comitê do processo de tomada de decisões, isso sinaliza que ele não acredita que o comitê seja legítimo para atender a essas demandas. Isso é grave, é muito ruim”. 
Teixeira Filho diz ainda que, além do peso político, os comitês de bacia têm uma competência técnica que foi desprezada pelo governo. “Esses grupos trabalham, já há mais de 20 anos, com a questão da gestão das águas. Se debruçam sobre esse assunto. Nada mais justo que essas pessoas, que têm essa experiência, que têm esse envolvimento, sejam chamadas pelo governador do Estado e tenham uma participação”. 
“No momento em que se tem essa situação de crise, de excepcionalidade, não dá para abrir mão da experiência, do conhecimento local”, disse. “Então isto mostrou uma fragilidade do sistema de gestão. Acredito que o governador do Estado foi muito infeliz nessa parte, de deixar de lado essa experiência”.
Ele não acredita que a rapidez necessária para reagir a uma situação de crise justifique a exclusão dos comitês do processo. “Porque a estrutura já está montada, você tem os representantes, a qualquer momento pode chamar uma assembleia extraordinária, enviar informações aos representantes para que possam repartir isso com seus representados. A questão do tempo não seria uma justificativa. Porque tudo isso já estava montado, muito bem montado e muito bem estruturado”.
A questão da água, disse ele, não é num problema técnico. “Quanto à questão técnica, nós temos pessoas da maior capacidade, que podem dar boas respostas. O problema não é técnico, é como se encaminham as decisões. Pode-se encaminhá-las com mais ou menos conflito”.

MANEJO
o professor jose teixeira filho
“Na bacia do Rio Piracicaba, havia uma proposta de que todos os cursos d’água passassem a ter classe 2”, disse ele, explicando que há quatro classes de qualidade de água, sendo a classe 1a da água que pode ser distribuída para consumo humano com um mínimo de tratamento e a 4, a água imprópria para abastecimento.
“Hoje, em algumas seções de captação, em municípios da bacia do Piracicaba, estamos em classe 3. O objetivo era passar isso para classe 2, num horizonte próximo. Para isso, foi feito um esforço enorme do comitê de bacia no tratamento do esgoto. Só que o que estamos observando é que todo esse esforço não garante que possamos ter classes 2 em todos os cursos d’água. Então, há necessidade de uma outra abordagem”.
Essa abordagem envolve intervenções nas regras que regem as atividades industriais e agrícolas que acontecem ao longo da bacia. “Principalmente na parte agrícola, onde temos que alterar, muitas vezes, o manejo, regulamentar o manejo de algumas atividades, ou mesmo fazer com que algumas atividades, infelizmente, não sejam mais permitidas na região”, disse. “O comitê deve se debruçar, nos próximos anos, para estudar regras e regulamentos para que esses processos, não só na parte agrícola, mas também industrial, comecem a se organizar mais para a preservação da qualidade de água. Não só da quantidade, mas da qualidade de água”.

AGRICULTURA
O pesquisador nega que haja desperdício deliberado de água na agricultura praticada ao longo da bacia do Piracicaba – o uso agrícola chegou a ser citado como um dos “culpados” pela crise no abastecimento urbano desencadeada pela seca recente.
“O que talvez nós tenhamos que melhorar, são os rendimentos e os processos”, disse ele. A redução do consumo de água é possível. Mas esse esforço está sendo realizado por vários setores produtivos na bacia do Piracicaba desde 1995. “Porque já se sabia que, na implementação da nova politica de gestão de recursos hídricos, viria o pagamento pelo uso da água”, relatou. “Então, vários setores produtivos vêm fazendo um esforço de reduzir a quantidade de água usada. Isso é importante a população saber”. 
Ele lembra que a cultura da cana-de-açúcar não é irrigada, mas exerce uma interferência indireta na disponibilidade de água, ao gerar “caminhos preferenciais” que fazem com que água fique menos tempo na superfície do solo, reduzindo a quantidade de água infiltrada que chega aos reservatórios subterrâneos. “Por isso falo em regulamentação: temos que começar a pensar em qual a situação mais indicada no manejo da cana, como aumentar as condições de infiltração e assim garantir que a água esteja disponível na estiagem”.
Quanto ao impacto da agricultura na qualidade da água, Teixeira Filho diz que é importante regulamentar e orientar corretamente os agricultores quanto ao uso de insumos como defensivos agrícolas. “É complicado, por exemplo, usar produtos sem ter segurança climática, das condições do tempo. Se há uma previsão de chuva em 24 horas, 48 horas, não se deve usar o produto”, pois ele pode ser carregado para os cursos d’água antes mesmo de se mostrar efetivo. 
“É preciso oferecer uma assistência técnica mais intensiva para os pequenos produtores. Chamo de pequenos produtores aqueles que não têm, muitas vezes, uma programação prevista, e sim corretiva – onde há a identificação de problema e depois a correção. Uma ação preventiva seria muito mais interessante e de um custo menor, não só econômico como ambiental”. Detalhes como a manutenção dos equipamentos que disseminam o produto sobre a plantação, para que o tamanho da gota seja o ideal, também fazem uma grande diferença no aspecto ambiental. “Se você não tem essa calibração correta e aumenta o tamanho da gota, aumenta-se também o que chamamos de deriva: a quantidade de substância que não atinge o alvo. E fica no ambiente, para ser transportada. Tudo isso prejudica a qualidade da água”.
“Os manejos do solo, a perda de solo agrícola, são questões que são importantes, que no futuro, principalmente na bacia do Piracicaba, serão objeto de discussão intensa. Mas esses regulamentos, eles devem ser pactuados e negociados com a sociedade civil”, ponderou o pesquisador, trazendo à tona, mais uma vez, o importante papel de mediação dos comitês de bacia. “Sabendo das situações negativas que podem vir disso, que é o caso de aumento do custo da produção, mas com um benefício maior da sociedade: da qualidade de vida melhor, uma perspectiva de saúde pública melhor. E redução no custo do tratamento de água mais adiante, sem dúvida”.
“Todas essas questões são conhecidas pelo comitê de bacia”, insistiu. “São discutidas no dia a dia. Elas aparecem a partir dos representantes que compõem o comitê, que trazem suas preocupações. Há uma experiência acumulada nesses anos, e é importante que ela seja utilizada pelos gestores públicos, pelos tomadores de decisão”.

Fonte Jornal da Unicamp
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