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"A crise hídrica é conhecida desde 1980", diz pesquisadora

  • pode ser objeto de especulações financeiras
Em dezembro do ano passado, Yvonilde Medeiros apresentou os resultados de seu estudo sobre o rio São Francisco, durante um encontro do comitê da bacia hidrográfica, em Maceió. A reação da plateia, ela lembra, "foi de perplexidade". Professora do curso de engenharia ambiental da Ufba e doutora em hidrologia pela Universidade de Newcastle, na Inglaterra, Medeiros é uma das fortes vozes a propagar "o quadro alarmante" do rio. Um cenário onde, segundo ela, somam-se os efeitos provocados pelo setor elétrico, a retirada de água para a agricultura e o projeto de transposição -  obra que, mergulhada em dezenas de aditivos contratuais, viu seu orçamento saltar dos R$ 4,7 bilhões inicialmente previstos, para R$ 8,2 bilhões; a obra mais cara do país tocada com recursos exclusivos da União. Nesta entrevista à Muito, a pesquisadora expõe detalhes da situação do São Francisco e da crise hídrica no Brasil.
As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro aproximam-se de um colapso no abastecimento de água. Até que ponto este é um problema localizado?
O que hoje se chama de crise hídrica sempre houve no Nordeste e até no Sul do país. Não chamávamos de crise hídrica, e sim de seca. Mas a visibilidade do Nordeste não é a mesma. O que já acontecia em outras partes do país, desde que a gente se entende por Brasil, agora  acontece na vitrine. Aí o problema ganhou a gravidade necessária. Os chineses dizem que crise é  oportunidade. Talvez esta  seja uma oportunidade para que o Brasil entenda que, apesar de  ter imensa riqueza hídrica, pode chegar à escassez.
E como um país com um dos maiores reservatórios de água do mundo chega a este cenário?
Isso não acontece por falta de legislação, nem por falta de instituições. Mas, sim, por falta de decisão política. O Brasil tem uma das leis mais completas e modernas do mundo em relação à água. Quando se fala em modelo de gestão de recursos hídricos, o Brasil não tem nada a dever. Mas essa legislação, que vem no bojo da Lei de Águas, de 1997, não se implantou de fato. A crise hídrica foi detectada nos anos 1980. E o grande motivador para que a Lei das Águas saísse foi, justamente, São Paulo. O que me espanta é o espanto. Por que as pessoas estão surpresas com a crise de água em São Paulo, se ela foi a grande motivadora de todo o aprimoramento na legislação? A crise é uma realidade, é algo que falamos há 30 anos.
Megaobras, como a transposição do rio São Francisco e o sistema Cantareira (SP), enfrentam graves problemas. Medidas de pequena escala são mais eficazes para solucionar a questão hídrica?
O Brasil tem um histórico de grandes obras porque elas aparecem politicamente. E a própria sociedade parece depositar mais fé nelas. Sugerir pequenos reparos parece soar, para a população, como uma fuga ao problema. Isso é cultural.  Cavar poços públicos e consertar os vazamentos nas tubulações do sistema são medidas de menor escala - que ainda não foram realizadas -, mas que, em menos de um ano, poderiam reduzir gigantescas perdas de água.
Quanto, no nível dos reservatórios, é decorrência da falta de chuva?
Estamos vivendo, de fato, um período de baixa pluviosidade. O que observamos é uma tendência de escassez  como nunca tivemos desde que os dados pluviométricos passaram a ser registrados, há 100 anos. No entanto, não há como responsabilizar a chuva. Ela pode ampliar o problema, mas não é a causa dele. Em 1970, os pesquisadores já alertavam para o crescimento da demanda por água no Brasil, independentemente da quantidade de chuva.
A Embasa estuda estabelecer parcerias público-privadas. Como a senhora avalia esse modelo de negócio?
Penso que a água é estratégica demais para ser objeto de especulação financeira. Mesmo nos países mais capitalistas do mundo, como a Holanda, as empresas de abastecimento  são públicas.
As indústrias deveriam pagar mais?
A lei prevê isso - prevê que haja cobrança diferenciada para quem usa a água para atividade produtiva. Os grandes consumidores  e a perda de água por falta de manutenção do sistema representam os maiores gastos. A indústria deveria pagar mais. Na prática não paga.
A Agência Nacional de Água divulgou um artigo sobre a situação hídrica na Bahia, onde consta que "22% dos municípios apresentam condições satisfatórias para atendimento da demanda de 2015". É um número baixíssimo, não?
É um número baixíssimo, mas que pode ser ainda menor, se levarmos em conta a qualidade. O uso de uma tecnologia obsoleta de tratamento, com doses cavalares de cloro, e a negligência no saneamento são recorrentes. Que tipo de água está sendo entregue a essa população? É algo que precisa ser investigado. 
No ano passado, a senhora concluiu um estudo sobre o Baixo São Francisco. Que resultados encontrou?
A população ribeirinha vive de forma completamente diferente hoje. Há dez, 20 anos, pescavam na época das cheias e plantavam na época de baixa do rio. O ciclo de produção e o modo de vida deles variavam de acordo com o ciclo natural. Depois vieram as hidrelétricas, a irrigação, as barragens - de Sobradinho, Santa Maria, Paulo Afonso, Itaparica, Xingó -, que alteraram  a natureza do rio. Hoje, há municípios-fantasmas em torno do São Francisco. A população ribeirinha não consegue mais viver da pesca.
Como a obra de transposição vem colaborando com este processo?
Ela chegou quando o estrago já estava feito. A transposição é mais um usuário que tira água do rio. E vai tirar numa quantidade que a gente ainda não sabe. O projeto prevê  26,4 metros cúbicos de água, mas as dimensões dos canais permitem passar 125 metros cúbicos.  
A extinção do rio é uma possibilidade?
Depende de como se define "extinção". Água sempre haverá no rio. Mas em que quantidade? E essa quantidade será capaz de alimentar o bioma local? Essas são questões que podem definir a "extinção". O que posso afirmar é que a vida, no  São Francisco, está sendo alterada. A pesquisa da qual fiz parte dedicou-se a entender qual é o volume mínimo necessário para atender à preservação e manutenção do ecossistema aquático. Então, criamos um ideograma e, hoje, discutimos isso com o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (integrado pelo poder público, sociedade civil e empresas). A ideia é implementar uma prática, na gestão do rio, que permita a existência desse volume mínimo. Não é fácil obter isso. Trazer mais água para o meio ambiente e para as comunidades ribeirinhas implica uma restrição, por exemplo, para as hidrelétricas. O poder do comitê ainda está baixo. Ele não senta junto ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) com poder de igualdade. Deveria ter um peso político e institucional que permitisse exigir do setor elétrico a consideração pelos outros usos da água do rio. Embora a legislação diga, claramente, que a prioridade é o abastecimento humano, o setor elétrico, no Brasil, se coloca acima de tudo - e isso acontece porque existe um arcabouço político e institucional que garante esse poder.
A senhora acredita que o brasileiro está preparado para reduzir o consumo?
Não. Temos baixíssimo nível educacional, e economizar passa por educação. Se dependemos da água e ela é limitada, o consumo deve ser limitado. Temos que apreender desde cedo a viver com isso. Quanto cada um pode usar? Quanto temos? Quanto está disponível? São questões que ainda não entraram na vida cotidiana. A crise, ironicamente, pode ser boa neste aspecto.

Fonte: A Tarde
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